E um dos malfeitores que estavam pendurados blasfemava dele, dizendo: Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós. Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez. E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso. (Lc 23:39-43)
[39] E um dos malfeitores que estavam pendurados blasfemava dele, dizendo: Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós. Não sabemos o crime que cometeram os dois homens que foram crucificados ao lado de Jesus. O nosso texto se limita a chamá-los de “malfeitores”. Um deles, com efeito, mesmo na hora de sua morte, fez jus à alcunha com que foi denominado por Lucas, posto ter utilizado o seu mortiço fôlego para blasfemar do Senhor, em conjunto com as autoridades judaicas, as quais zombavam dele, bradando-lhe: “Aos outros salvou; salve-se a si mesmo, se este é o Cristo, o escolhido de Deus” (v. 35). Entrementes, os soldados romanos erguiam as suas vozes e dele escarneciam: “Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo” (v. 37). É perturbador que um dos malfeitores, do alto de sua cruz, haja reforçado o coro de escárnio que dirigiam a Jesus, uma vez que ele mesmo se achasse também preso ao madeiro.
A sequência de verbos que qualificam o tipo de discurso que, à uma, os chefes dos judeus, a soldadesca romana e o malfeitor crucificado proferiam contra Cristo é terrível: eles zombavam, escarneciam e blasfemavam dele. Até o versículo 39, o quadro que nos é apresentado possui somente cores escuras e frias, causando-nos pavor, o qual é acentuado quando percebemos que se trata de uma representação fiel da humanidade. Aqueles homens que, com um discurso malvadamente irônico, ordenavam a Jesus que se salvasse não são diferentes de nós. Antes de sermos regenerados pelo Espírito Santo de Deus, para que pudéssemos enxergar a glória do Evangelho de Jesus, não achávamos razão para amar o Senhor, mas apenas para zombar dele. Se ele é o Cristo, que traga paz ao mundo; porém, se ainda existe o mal, é claro que ele não é o Cristo. Se ele é o Cristo, salvará a todos, independentemente da religião que professam; no entanto, já que ele disse ser o único caminho até Deus, não pode ser o Cristo. Reparem que a estrutura do nosso discurso em nada difere daquela utilizada pelos espectadores da crucificação; imaginamos que Jesus seja obrigado a ser e fazer o que queremos que ele seja e faça. Contudo, uma vez que ele não se conforme aos nossos padrões, concluímos que ele não pode ser quem afirma ser. Se ele não for quem queremos que ele seja e fizer aquilo que queremos que ele faça, nós o rejeitamos. O malfeitor crucificado, junto com a liderança judaica e os soldados do Império, julgava que Jesus, para que fosse o Cristo, deveria descer da cruz e se salvar do suplício da morte.
Porém, não somos nós quem definimos quem o Senhor é. Tampouco somos os responsáveis pela sua agenda. É ele, inversamente, quem define quem somos, assim como quem estipula de que maneira devemos agir. O existencialismo não deve ter lugar dentro da Igreja de Cristo. A existência não precede a essência, ao contrário do que propôs Jean-Paul Sartre. Jesus não é uma mera essência que construímos, de modo que ele desempenhe exatamente o papel que lhe designamos. Existe uma realidade objetiva e exterior a nós, à qual devemos nos conformar e que deve moldar a nossa essência. Essa realidade é Jesus, de quem zombaram, escarneceram e blasfemaram, à medida que buscavam definir quem ele deveria ser e o que deveria fazer. Não seja a nossa atitude como a daqueles homens. Conformemo-nos a Cristo, ao invés de querer conformá-lo aos nossos vãos pensamentos.
[40-41] Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez. Em meio à zombaria blasfema do primeiro malfeitor, o outro, que também se achava crucificado, o censurou, reprovando-o por não temer a Deus. Em outras palavras, zombar de Jesus equivalia a não temer a Deus; e, conforme dissemos no tópico anterior, o escárnio do malfeitor crucificado se baseava numa concepção errônea a respeito da natureza e obra do Messias. Para aquele homem, se Jesus fosse o Cristo, tinha a obrigação de livrar a si mesmo (e aos seus consortes) da cruz. E, posto que o Senhor continuasse crucificado (assim como os dois malfeitores), não podia ser o Messias. Então, a reprovação que o salteador penitente dirigiu ao seu colega pode ser assim parafraseada: “Ao afirmar que Jesus não é o Cristo, você mostra que não teme a Deus”. A impenitência do malfeitor zombeteiro era acentuada pelo fato de ter sido ele crucificado de modo justo, enquanto Jesus, imerecidamente.
As palavras do segundo malfeitor indicam, em primeiro lugar, que ele, nos momentos finais de sua vida, reconheceu que Jesus era o Cristo, haja vista que tenha reprovado o seu amigo por não o fazer. Em segundo lugar, ao afirmar que havia sido condenado com justiça, ele se reconheceu pecador. Essas duas descobertas são as maiores e mais sublimes que um ser humano pode fazer! Trata-se de um doente que reconheceu que precisava de um médico e que, repentinamente, se vê diante do Médico dos médicos. Aquele homem constatou que era mau e pecador, mas, simultaneamente, reconheceu que quem estava pendurado na cruz ao lado era o próprio Cristo, o perdoador de pecados.
Não importa quem somos ou o que já fizemos. Não importa se somos bandidos ou membros não regenerados de uma igreja. Uma vez que reconheçamos que somos pecadores e que Cristo tem poder para perdoar pecados (Lc 5:24), o nosso problema está resolvido. Basta crermos no Crucificado, o qual, conforme as palavras do malfeitor arrependido, não havia feito mal algum e estava, portanto, sofrendo injustamente. A razão do sofrimento injusto a que se submeteu o Senhor é assim expressa por Pedro: “Porque Cristo também padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus” (I Pe 3:18). Aquele homem que estava pendurado ao lado do Senhor pôde se assegurar de que Jesus não estava sofrendo em decorrência de seus próprios pecados, pois ele não os tinha; mas por causa dos pecados de homens como ele, salteadores que mereciam não somente a crucificação, mas a morte eterna. Cristo, porém, deu a sua vida por nós, “para levar-nos a Deus”. A continuação do texto nos mostra que, de fato, o malfeitor que esteve ao lado do Senhor na sua morte foi levado a Deus.
[42-43] E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso. O malfeitor penitente, então, após se reconhecer pecador e aceitar que Jesus era o Cristo, dirige-lhe a sua palavra, chamando-o de “Senhor”, título comumente atribuído a Deus (cf. 1:16), através do qual o salteador reconhecia a divindade do Carpinteiro de Nazaré, ao mesmo tempo que rechaçava as falsas concepções que o seu companheiro e a multidão tinham do Messias. Enquanto muitos queriam que Jesus, para que fosse considerado o Cristo, agisse de certa forma, o malfeitor que lhe dirigia a sua palavra o chamou de “Senhor”, indicando que Jesus não estava sujeito à vontade de nenhuma das pessoas que o circundavam e dele zombavam, mas que elas é que deveriam se submeter ao seu senhorio.
Em seguida, vem o pedido: “Lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino”. Com essas palavras, o malfeitor reconheceu que, embora Cristo morresse, a sua vida não cessaria. Após a morte, o Senhor entraria no seu Reino, ao qual o salteador penitente solicita entrada. A resposta de Jesus, embora curta, enche-nos de gozo: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. Foi-lhe concedida, pela fé em Jesus, entrada ao Paraíso celestial, depois que o seu suplício tivesse fim. Aquele homem, que não tinha obra alguma para oferecer a Deus e cujas mãos estavam vazias, obteve a certeza de que, pela fé, seria salvo! Qual deve ter sido a alegria dele! Certamente, as horas que se estenderam desde a declaração de Cristo até o último suspiro do malfeitor foram dolorosas, mas, posto que permeadas pela alegria da salvação, foram doces! Andar solitário pelo vale da sombra da morte é desesperador e angustiante; mas, quando o Senhor está conosco, não tememos mal algum. A vara e o cajado do nosso Pastor nos consolam, apesar da dificuldade do caminho. Não há dúvidas de que o nosso irmão que foi crucificado junto ao Senhor, na qualidade de ovelha perdida que foi achada, recebeu o consolo da parte do Sumo Pastor, até que, mediante o seu último suspiro, foi recebido no Paraíso, onde encontrou o Senhor que amou tarde, mas em tempo oportuno.