Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade… (Colossenses 3:12)
A conclusão que o apóstolo faz no v. 12 deriva da afirmação que ele havia feito no versículo precedente: “[no novo homem] não há grego nem judeu, cincuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo em todos”. A suma da argumentação de Paulo ao longo desse trecho pode ser assim apresentada: “visto que Deus não escolha pessoas com base em sua etnia, nacionalidade ou ocupação, vocês, colossenses, mesmo sendo gentios – e, portanto, não sendo judeus –, foram também eleitos”. Por conseguinte, pode-se corretamente estatuir que a eleição divina não é condicionada por critérios étnicos, nacionais ou territoriais. Existem, contudo, outros critérios que Deus utiliza como base para a sua eleição? Ou, em outras palavras, a escolha de homens para a salvação é condicional, como querem os arminianos, ou incondicional, como propõem os calvinistas? A fé é produto da eleição ou a eleição é produto da fé?
A fim de que a estrutura do pensamento do apóstolo no v. 12 fique mais nítida, colocá-lo-emos num quadro, juntamente com um enunciado fictício e de construção idêntica, para que sejamos capazes de entender corretamente a relação existente entre a eleição e o imperativo que a segue:
A | Vós, colossenses, como (ὡς) eleitos de Deus, santos e amados, | revesti-vos de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade. |
B | Você, João, como veterinário, | cuide bem dos animais. |
Em primeiro lugar, atentemos para a segunda sentença e para a relação de causalidade entre as suas duas partes, com o fim de, então, podermos aplicar as conclusões a que chegarmos à afirmação de Cl 3:12, dado que a estrutura de ambas as elocuções seja a mesma. Qual das duas proposições abaixo expressa, com precisão, o sentido de B?
I | João é veterinário. Portanto, deve cuidar bem dos animais. |
II | João cuida bem dos animais. Portanto, é veterinário. |
Todos os veterinários devem cuidar bem dos animais, mas nem todos os que cuidam bem dos animais são veterinários. É evidente que a sentença I é a que exprime corretamente o sentido de B; posto que a conjunção “como” (“na qualidade de”, “enquanto”), no exemplo que produzimos, sirva para introduzir uma característica ou qualidade do enunciatário que é tomada como a causa do imperativo que vem em seguida. Se aplicarmos a mesma leitura à sentença A, o seu sentido será: “os colossenses são eleitos de Deus, santos e amados. Portanto, devem revestir-se de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade”. Existe uma relação de causalidade entre as duas partes nas quais dividimos o texto de Cl 3:12 – a segunda delas é uma derivação lógica da primeira. Para Paulo, a eleição é a causa (e não o efeito) de uma vida regulada por disposições mentais adequadas e agradáveis a Deus.
Tanto arminianos quanto calvinistas acreditam que, a fim de que uma pessoa seja salva, é necessário que a fé dela seja de natureza perseverante. Ademais, também têm em comum o entendimento de como essa fé perseverante se expressa: através da prática de boas obras. Contudo, quando se considera a relação da eleição com a perseverança na fé, existe uma notável diferença entre arminianos e calvinistas. Enquanto os segundos defendem que a eleição divina assegure a fé perseverante aos escolhidos, os primeiros sustentam, de maneira inversa, que Deus escolheu aqueles que, no exercício de sua vontade livre, perseverariam na fé. Portanto, para os arminianos, a eleição está condicionada à perseverança, ao passo que, para os calvinistas, Deus escolhe indivíduos incondicionalmente.
Tomaremos por certa, verdadeira e bíblica a crença de que a única fé que salva é a perseverante e de que essa fé se expressa através da prática de boas obras. Mas, no tocante às formas como se pensa a relação entre fé perseverante e eleição, é necessário que cheguemos a uma conclusão. Qual das duas propostas está em harmonia com as afirmações de Paulo em Cl 3:12: a arminiana ou a calvinista?
Em primeiro lugar, não percamos de vista que o apóstolo havia dito que a eleição era a causa de um coração no qual prevalecessem as disposições para a prática do bem. Um arminiano, a fim de explicar essa passagem, poderia dizer que Paulo não afirmou que a eleição fosse a causa da fé, mas apenas dessas boas disposições da mente. No entanto, o que são essas boas disposições senão a evidência e a consequência da fé? A disposição para cumprir os mandamentos divinos não é possível para alguém que não seja regenerado – para alguém que não tenha fé, portanto (Cf. Rm 8:5-6).
O sentido das palavras do apóstolo é, então: “visto que vocês tenham sido escolhidos por Deus, é necessário que a fé que essa eleição lhes assegurou se expresse por meio de um coração disposto a praticar o bem”. Paulo estava exigindo que os seus leitores, em decorrência da eleição, apresentassem aqueles sinais que acompanham e comprovam a veracidade da fé. Em outras palavras, ele estava dizendo: “já que vocês foram eleitos, expressem a fé de vocês de acordo com as boas disposições mentais que Deus concedeu aos seus escolhidos”. Não faz sentido que a eleição assegure aos homens somente as evidências da fé, mas não a própria fé. Deus escolheu homens para que tivessem bons corações, mesmo que não tivessem fé? É evidente que, para que o texto faça sentido, temos de ter em mente que a eleição divina assegura para os eleitos a fé perseverante, a qual se expressa através de um coração disposto a observar os mandamentos divinos, um coração que nos leva a praticarmos o bem. Quando, então, Paulo exigiu dos colossenses que devessem agir em conformidade com as boas disposições mentais que a eleição divina lhes afiançara, devemos inferir que estava implícito que a mesma eleição lhes houvesse garantido a própria fé (e não somente os atos da fé).
Um arminiano, diante de Cl 3:12, teria de reconhecer que a fé que Deus anteviu num determinado indivíduo e que o levou a elegê-lo para a salvação era meramente teórica; pois, se a eleição, como afirma o nosso texto, precede as evidências da fé e a fé, conforme os arminianos, antecede a eleição, Deus, no momento em que elegeu indivíduos com base na fé que neles previu, anteviu, na verdade, uma fé que não era de natureza perseverante, visto que a perseverança seja decorrente da eleição, como afirma Paulo. Isso, naturalmente, contradiz a soteriologia arminiana. A única possibilidade que nos resta é abraçarmos o ensinamento bíblico de que a eleição divina nos afiança um tipo de fé perseverante, isto é, tanto a fé quanto as suas evidências e decorrências.
Portanto, a doutrina arminiana da eleição condicional não pode ser harmonizada com Cl 3:12. Condicionar a eleição divina à fé que, conforme Deus antevira, seria exercida por meio da livre vontade de certos homens não explica satisfatoriamente o nosso texto. A eleição da qual a Bíblia trata é incondicional, isto é, não se baseia em nada além da livre vontade de um Deus totalmente soberano.