“Então, falou Deus todas estas palavras…” (Ex 20:1)
“Deus falou” – trata-se de uma construção bastante usual: um substantivo unido a um verbo dicendi (declarativo). No entanto, o que confere peculiaridade a essa sucinta oração é o sujeito do verbo falar: Deus. Foi o próprio Deus quem falou – sem intermediários, mensageiros ou emissários! Ele falou audivelmente, produzindo ondas sonoras que se propagaram pelo ar, atingiram ouvidos humanos e foram transformadas em sinais elétricos, os quais, por sua vez, foram enviados aos cérebros dos ouvintes e decodificados. Deus falou, e homens o ouviram!
Quem, porém, foram essas pessoas que ouviram a voz divina? Os filhos de Israel, que, milagrosamente, pouco tempo antes, tinham sido libertos da tirania do faraó. Ao verem, no entanto, os sinais que acompanharam a fala do Senhor, temeram e rogaram a Moisés que, dali em diante, ouvisse, ele só, a mensagem divina e a transmitisse ao povo todo: “fala tu conosco, e ouviremos; e não fale Deus conosco, para que não morramos” (Ex 20:19).
Repare na recorrente alusão que o capítulo 20 faz aos mecanismos sensoriais dos filhos de Israel, através dos quais eles fizeram uma leitura dos eventos terríveis que estavam presenciando. Trovões e relâmpagos iluminavam os seus olhos e, junto com o sonido de buzinas, lhes atordoavam os ouvidos. O monte que, bem à sua frente, fumegava era objeto do olhar pasmo deles. A audição e a visão os conduziu, então, ao terror. Ao longo de todo o capítulo 20, que é uma das mais notáveis composições sinestésicas da Bíblia, os sentidos dos descendentes de Jacó são implacavelmente expostos à intervenção teofânica de seu Deus, e o resultado é que eles foram tomados pelo temor.
O versículo 20 afirma que Deus se manifestara daquela maneira justamente para que o povo o temesse; mas, logo em seguida, acrescenta a finalidade do temor que o Senhor almejava implantar nos corações dos israelitas: “para que não pequeis”. Contudo, o medo que sentiram não os levou a temer o descumprimento das ordenanças que haviam acabado de receber em alto e bom som; pois a sequência da narrativa nos mostra que, passados apenas alguns dias, os filhos de Israel quebraram o segundo mandamento, construindo imagens de escultura para si (cf. Ex 32:1-18).
O temor que penetrara os seus corações não os afastou do pecado. Na verdade, o pedido que fizeram no versículo 19 evidencia que o medo que sentiam era um receio de que os sinais portentosos que acompanhavam o discurso divino os matasse. Eles tinham medo de que, se Deus insistisse em lhes falar audivelmente, pudessem, talvez, ser atingidos por um raio ou ter as suas tendas tomadas pelo fogo que ardia sobre o monte. Os antigos israelitas foram incapazes de perceber que os sinais que acompanharam a entrega do Decálogo tinham a finalidade de chamar a atenção do povo para os próprios mandamentos, os quais eles deveriam cumprir, caso não quisessem cair nas mãos do Deus de cujo poder eram testemunhas oculares. O que há de mais impressionante no episódio que estamos analisando não são os sinais, mas os mandamentos que foram promulgados e recitados pelo próprio Deus. Os sinais deviam apontar para ele e para as palavras que haviam saído de sua boca, mas os israelitas não os souberam interpretar. Para eles, os sinais eram apenas uma ameaça à sua vida.
A maneira como os Dez Mandamentos foram transmitidos aos israelitas os assombrou, embora o conteúdo das palavras divinas não os tenha feito temer. Hoje, porém, ainda que Deus não pronuncie audivelmente o Decálogo ou, diante dos nossos olhos, faça um monte entrar em chamas, temos o conteúdo do seu discurso impresso em folhas de papel e, portanto, podemos temer a Deus por causa do que ele disse, ao invés de o temermos pela forma como o disse. O que mais nos impressiona? A voz de muitas águas ou a mensagem que essa voz nos transmite?