“… Porque melhor é que padeçais fazendo o bem (se a vontade de Deus assim o quer) do que fazendo o mal. Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais em outro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água, que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, batismo, não do despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo; o qual está à destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potências.” (I Pe 3:17-22)
“É melhor sofrer fazendo o bem do que fazendo o mal”. São essas as palavras com as quais Pedro chama os seus leitores a abraçarem o sofrimento de Cristo. Repare que ele não disse que seria melhor não sofrermos do que sofrermos fazendo o bem; pois sabia que, para um cristão, o sofrimento não era opcional (Cf. I Pe 4:12). Inúmeros versículos, espalhados por todo o NT, deixam bastante claro que, se quisermos ter comunhão com Cristo e estar unidos a ele, sofreremos, sentiremos dor, beberemos angústia como água, a aflição será a nossa companheira inseparável, lágrimas escorrerão pela nossa face incessantemente; “pois também Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigamos as suas pisadas” (I Pe 2:21). O que o apóstolo está fazendo é descortinando para nós o caminho pelo qual Cristo, o Pastor e Bispo das nossas almas, nos conduz: um caminho de sofrimento, um caminho cujo solo está coberto de sangue, um caminho repleto de espinhos.
Por que, então, devemos seguir por esse caminho que nos fará padecer tanto? “Porque Cristo padeceu uma vez pelos pecados”. Em outras palavras, o nosso Pastor seguiu pela estrada na qual, hoje, estamos e, através do rastro do seu próprio sangue, indicou-nos o caminho pelo qual deveríamos seguir. Nós, ovelhas suas, devemos submeter-nos, então, à sabedoria do nosso Pastor e seguir o trajeto escarlate traçado por ele mesmo, certos de que o caminho que ele nos propôs é o melhor. Não é o melhor por ser um caminho que não nos proporcionará sofrimento, mas justamente por ser o caminho pelo qual aqueles que têm comunhão com Cristo seguem, apesar de todas as dores que teremos de provar ao longo da jornada. Se estamos, pois, no caminho, é porque temos comunhão com o Sumo Pastor, e essa comunhão implica em que sejamos “participantes das aflições de Cristo” (I Pe 4:13), isto é, que sigamos o mesmo caminho pelo qual ele seguiu. Se você está no caminho, continue nele, apesar das dores e da angústia que se apodera do seu coração. Caso você esteja prostrado, exausto e ferido, a ponto de não conseguir mais caminhar, rasteje; visto que, nas palavras de Agostinho, “é melhor rastejar no caminho do que correr fora dele”. Apenas não se desvie do caminho, não abandone o trajeto que o Pastor lhe propôs.
Pedro não apenas afirma que seremos participantes das aflições de Cristo, mas nos chama a nos alegrarmos nisso (I Pe 4:13-16):
Alegrai-vos no fato de serdes participantes das aflições de Cristo, para que também na revelação da sua glória vos regozijeis e alegreis. Se, pelo nome de Cristo, sois vituperados, bem-aventurado sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória de Deus. Que nenhum de vós padeça como homicida, ou ladrão, ou malfeitor, ou como o que se entremete em negócios alheios; mas se padece como cristão, não se envergonhe; antes, glorifique a Deus nessa parte.
Quando, portanto, ele afirmou, em 3:17-18, que deveríamos estar dispostos a sofrer, visto que Cristo tenha sofrido pelos nossos pecados, não queria, de maneira alguma, afirmar que o cristianismo roubasse de nós a alegria, mas que Jesus estabelecera uma nova e firme base para ela: o sofrimento, o qual não deve ser encarado como um fim em si mesmo, posto ter uma dupla finalidade: é o meio pelo qual somos aperfeiçoados na fé (I Pe 5:10) e, ao mesmo tempo, o lembrete divino de que estamos num caminho que, apesar de doloroso, nos levará à Pátria celeste, e isso nos enche de alegria, mesmo em meio às aflições e tentações que enfrentamos neste mundo (I Pe 1:3-6). Essas duas finalidades do sofrimento possuem uma relação bastante estreita, haja vista que o requisito para entrarmos na Pátria celeste seja a fé perseverante, e a fé só poderá ser considerada perseverante se for achada “em louvor, e honra, e glória na revelação de Jesus Cristo” (I Pe 1:7). Essa prova da fé é executada por intermédio do sofrimento. Portanto, enquanto o sofrimento tem como finalidade aperfeiçoar a nossa fé, acaba por estabelecê-la e confirmá-la, dando-nos acesso à Jerusalém celestial. É através da dinâmica do sofrimento que, de modo docemente paradoxal, Deus fortalece a nossa fé e, então, nos concede a alegria da salvação!
Pedro afirma não somente que Cristo tenha padecido, mas que o tenha feito “pelos nossos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus”. A finalidade pela qual o Senhor optou por seguir a estrada de sofrimento que lhe havia sido proposta foi a expiação dos pecados do seu rebanho, o qual se achava disperso, “como ovelhas desgarradas”. Ele tratou de reconduzi-las ao caminho pelo qual seguira e as colocou em comunhão consigo, fazendo-as participantes do seu sofrimento e conferindo-lhes, assim, a alegria da “salvação já prestes a se revelar no último tempo”. As ovelhas de Cristo estiveram, estão ou ainda estarão no caminho que lhes foi apontado – sangrando, cansadas, aflitas; mas com os rostos resplandecentes e os olhos sempre colocados no seu Pastor, o qual lhes promete, incessantemente, a fruição suprema, plena e eterna das delícias de Deus, conquanto o caminho lhes seja sobremodo hostil. Jesus, o justo, sofreu por nós, injustos, para levar-nos a Deus. Ele abriu para nós o caminho que nos levará seguros até o Céu, a via dolorosa, o caminho para a cruz. Tomemos a nossa cruz e trilhemos com o nosso Pastor esse caminho, cujo ponto final é o próprio Deus, em quem há alegria sem fim!
Jesus foi “mortificado, na verdade, na carne”. Embora o caminho que o Senhor seguiu o tenha levado à morte, a nossa esperança não teve fim juntamente com a cessação dos seus batimentos cardíacos. Quando o Senhor expirou, a firme base da nossa esperança não foi abalada, pois ele foi “vivificado em espírito”. O corpo do Senhor, malgrado se achasse adormecido, não levou o seu Espírito a morrer consigo – este continuava vivo, mesmo que aquele estivesse morto. O argumento que Pedro utiliza para comprovar que o Espírito de Cristo não pudesse ser considerado morto, inativo ou inerte, embora separado de seu corpo, é: “em Espírito, [Cristo] foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais em outro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água”. O apóstolo não quis indicar, de maneira alguma, como propõem alguns, que o Senhor, entre a sua morte e ressurreição, tenha pregado aos mortos. Pedro, com vistas a fornecer uma base sólida para o ensinamento de que, mesmo que desprovido de um corpo, o Espírito de Cristo não poderia ser considerado morto ou impossibilitado de agir, cita o exemplo de Noé. A fim de que entendamos o raciocínio de Pedro, convém que leiamos o que ele havia dito em 1:10-11:
Da qual salvação inquiriram e trataram diligentemente os profetas que profetizaram da graça que vos foi dada, indagando que tempo ou que ocasião de tempo o Espírito de Cristo, que estava neles, indicava, anteriormente testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir e a glória que se lhes havia de seguir.
Pedro afirmara que os profetas do Antigo Testamento (que, portanto, tinham vivido antes que Cristo tomasse a forma humana) tinham exercido a sua atividade de acordo com o Espírito de Cristo. Tendo isso em mente, o significado das afirmações do apóstolo em I Pe 3:19-20 é-nos revelado por John Piper:
A respeito de I Pedro 3:19, entendo que Cristo, através da voz de Noé, saiu e pregou àquela geração, cujos espíritos estão agora “em prisão”, ou seja, no inferno. Em outras palavras, Pedro não diz que Cristo pregou para eles enquanto eles estavam aprisionados. Ele diz que Cristo pregou para eles durante os dias de Noé e que, agora, eles estão aprisionados.
Portanto, visto que o Espírito de Cristo estivesse em plena atividade muito antes de sua encarnação (já nos tempos de Noé), é certo que a morte de seu corpo não o tenha levado a um estado de inércia ou de paralisia. A morte do nosso Pastor não aniquilou a nossa esperança; pois, não obstante seu corpo estar morto, seu espírito ainda vivia. O caminho de sofrimento que o Senhor abriu para nós e que ele mesmo percorreu não foi capaz de detê-lo ou de frustrar o seu plano de expiar os nossos pecados. Ao contrário, quando o sofrimento que o caminho lhe oferecia atingiu a maior intensidade (na crucificação), a obra de Cristo alcançou o seu maior esplendor e se revelou extremamente gloriosa. O sofrimento do nosso Pastor foi o que possibilitou a expiação dos nossos pecados. Se, pois, ele percorreu esse caminho e nos chama a seguir por ele também, não há dúvidas de que, apesar das provações a que seremos submetidos ao longo dele, chegaremos seguros ao destino a que ele nos conduz: o próprio Deus.
Em seguida, Pedro explica que o fato de Noé e sua família terem sido salvos da destruição por meio da água podia ser considerado uma figura da salvação que temos “pela ressurreição de Jesus Cristo”, a qual, por sua vez, é tipificada pelo batismo, “não do despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus”. O batismo não tem como finalidade remover a sujeira do nosso corpo, pois não se trata de um banho. Ele não tem a ver, portanto, com o nosso aspecto físico, mas com o compromisso de termos uma boa consciência diante de Deus, seguindo alegremente o caminho que Cristo nos reservou, sem nos desviarmos dele. Se permanecermos nesse caminho, seremos salvos pela ressurreição de Jesus, isto é, assim como o Senhor, ao percorrer a via dolorosa pela qual seguimos hoje, morreu e, depois de três dias, ressuscitou, podemos ter a certeza de que, ainda que o caminho de sofrimento nos leve à morte, estamos unidos a Cristo também em sua ressurreição. A morte não nos pode privar da “herança incorruptível, incontaminável e imarcescível” que nos foi prometida e está “guardada nos céus para nós”. A morte não é o fim, a morte não impede a nossa entrada na Jerusalém celestial. Embora morramos no caminho, Deus nos ressuscitará assim como ressuscitou o seu Filho, a fim de que estejamos com ele para sempre.
Por fim, é dito que “Cristo está à destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potências”. O estado glorioso do nosso Pastor é-nos revelado, para que os nossos corações se encham de esperança e percebam que, para um cristão, sofrer vale muito a pena. O caminho de sofrimento que Cristo nos abriu leva diretamente para o Céu e nos provê os meios necessários de edificação da nossa fé. Ele não nos ordenou que seguíssemos por esse caminho porque tivesse prazer em nos ver sofrer, mas porque ele tem prazer em ver todas as suas ovelhas ao seu lado para sempre, fruindo da maior felicidade possível: a presença de Deus com elas. Sigamos, portanto, com alegria, a via dolorosa, certos de que, cedo ou tarde, ela nos levará à morte, mas que, de modo algum, poderá nos separar do nosso Pastor; pois estamos inseparavelmente unidos a ele, em plena comunhão com ele, desfrutando dos benefícios que o nosso relacionamento com ele produz. Que, então, morramos no caminho! Que nós morramos rastejando, sangrando e chorando; mas que morramos no caminho! E que, quando rastejarmos, possamos nos alegrar; quando sangrarmos, possamos sorrir; quando chorarmos, possamos nos regozijar “com gozo inefável e glorioso”!